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FÉ NO RÁDIO

Escrito em dezembro de 2004 por Flávio Siqueira, radialista e coordenador artístico da CLIP FM – Emissora jovem da região da Grande Campinas. Tem 13 anos de rádio em São Paulo, com passagens pela 89, Metropolitana, Jovem Pan 2, Transamérica, entre outras. É colunista do TUDO RÁDIO, de onde este texto foi extraído.

São Paulo - Outro dia, no carro, enquanto cruzava a estrada, passeava pelo dial procurando ouvir um pouco de tudo.

O "scan" era acionado e parava em um cara falando: "Você está sofrendo? Quer mudar de vida? Crescer na vida e nos negócios? Nossa igreja ajudará você"... Avançava no dial e na próxima emissora: "Foi quando resolvi contribuir com um pouquinho, mal tinha pro ônibus, mas foi aí que Deus me recompensou"... Pouco mais pra frente, em outra freqüência: "Então amados irmãos, venham! Presença confirmada de Jesus Cristo"... Desliguei o rádio.

Vim pensando nisso. Fiquei imaginando como deve ser tentador pra um dono de rádio que, desgastado com problemas financeiros, queda de faturamento, problemas com funcionários, recebe a proposta de "alugar" sua rádio a um grupo religioso.

É dinheiro fácil, em grande quantidade pra ficar em casa e não ter mais preocupações.

Não bastam a infinidade de piratas, o comércio da fé invade as oficiais também. Promessas de bênçãos financeiras, "desmanche" de trabalhos de macumba, "descarrego", sal grosso, campanha dos 7 não sei o que, dos 350 pastores e por aí afora.

Não me preocupo só com os profissionais que perdem os empregos e seu campo de trabalho muitas vezes em cidades com pouquíssimas opções, como também com aqueles que, por desespero, se deixam levar pela força de persuasão que o rádio proporciona.

Já trabalhei em rádio religiosa e sei que tem muita gente boa lá. Bons profissionais, bem intencionados que dependem financeiramente daquele trabalho. Levam tudo a sério, confundindo sua profissão com uma missão.

Aliás, o rádio tem esse forte elemento que de certa forma nos transforma em "missionários", seja qual for a missão, mas isso fica perigoso quando o sentimento é messiânico, excludente e arrogante.

Aí entram pastores, "bispos", "apóstolos" com suas mensagens prometendo céu na terra para os que "ouvirem a voz de Deus" e manifestarem sua fé; obviamente doando algum dinheiro. A mensagem não se detém a uma emissora, mas, por exemplo, em São Paulo, são diversas entre oficiais e piratas, às vezes uma se sobrepondo a outra.

Quem me conhece sabe o quanto valorizo minha fé e o quanto ela faz parte da minha vida em todos os contextos, mas não se trata disso.

Trata-se de usar o rádio pra comercializar algo que se chama de fé.

Não conheço um dono de rádio que não tenha recebido uma tentadora proposta pra arrendar sua emissora à IURD. Compram, alugam e investem mais do que imaginamos em um império de comunicação. E pra quê? Boa intenção e interesse em propagar uma fé sadia? Não consigo acreditar nisso.

Estamos vendo o rádio se diluindo. E o que o mercado tem a ver com isso?

Se hoje temos que nos esforçar pra provar por aí que nosso veículo é uma mídia confiável, em parte é porque estamos perdendo o que resta de credibilidade a partir do momento em que abrimos nossa programação pra esse tipo de pregação.

E o pior é que as pessoas compram o pacote como se fosse "mensagem de Deus" e, quando se decepcionam, perdem a fé, a vontade de viver e o que restava de dignidade.

Não sou contra o uso do veículo pra que se expresse ali seu pensamento religioso, mas é fundamental que exista verdade.

Hoje de manhã, ouvi no carro o pastor fazendo testemunhal de produto pra emagrecer. Não consigo entender como alguém pode usar o rádio pra transferir a credibilidade que goza como "homem de Deus" a um produto que nem sabe direito se é confiável.

Isso me lembra a bispa que gosta de fazer comerciais de TV e posar na revista Caras.

E no rádio isso acontece muito. Ganha-se hoje, faz-se contratos temporários mas os efeitos são imensuráveis. Efeitos na emissora que arrenda, nas pessoas que ouvem e no rádio como um todo.

Me lembro de um "missionário" que, antes de ir ao microfone, comentava debochadamente com o operador: "Quer ver como se engana o povo?", e com voz piedosa e tom choroso dizia ao abrir o microfone: "Deus me disse que você deve contribuir com 12 reais. Porque 12? Não sei, amado... É mistério de Deus". Talvez Deus só estivesse precisando de 2 kg de carne.

Rádio é empresa e negócio, sim, precisa de recursos pra sobreviver e sabemos que os dias são difíceis, mas precisamos ir tão longe? Será que inventar um deus que ama o dinheiro e só recompensa quem doa é o ideal? Criar mecanismos psicológicos que geram medo e dependência, sem a preocupação do como isso pode frutificar em gente que não está nos seus melhores dias, deixa de ser problema nosso porque temos contas a pagar?

É responsabilidade de todos nós. Nós que fazemos, ouvimos e amamos o rádio.

Sei que no meio disso tudo tem gente de boa fé. Gente que está no rádio com coração puro e imbuído de falar sua mensagem, preocupado com quem ouve. Mas esses estão em minoria, tem menos dinheiro e menos poder; aparecem menos.

Tenho medo que amanhã, na medida em que a grana encurtar, mais e mais empresários se rendam a essa verdadeira tentação e, aos poucos, esse tipo de rádio predomine.

Que Deus nos ajude e nos dê consciência de até onde podemos ir. Que o rádio volte a ter credibilidade e possa dizer não a esse tipo de oferta.

Talvez eu seja um sonhador no meio de uma situação que já esta perdida, mas, como diria John Lennon, "but i´m not only one".

E o pior é que conheço gente do bem, que gosto e está perto de mim e da minha família, que ainda se alimenta disso. Que senta em frente ao rádio com o copo d´água em cima do aparelho e conta as moedinhas pra participar da próxima "campanha".

Ao escolher o rádio como profissão e veículo que te gerará sustento, pense nisso. Até que ponto sua profissão se confunde com quem você é? Até que ponto o meio em que você está inserido representa um pouco daquilo que acontece dentro de você?

É por isso que não dá pra fechar os olhos diante de situações como as que comentei aqui. Ver o rádio se transformando em balcão de negócios de "vendilhões do templo" não pode gerar em nós conformismo, mas servir de reflexão de onde estamos errando e do que podemos fazer. Nossa profissão pode ser mais do que uma profissão e, no momento em que isso for claro pra você, saiba que está realmente se transformando em um profissional.

Que a diferença comece em você.

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