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RIO É CIDADE PARTIDA PELA RELIGIÃO

Artigo de Israel Tabak, extraído da edição de 10 de outubro de 2004 do Jornal do Brasil.

Pesquisa mostra que eleição municipal teve voto útil de evangélicos em Crivella
e de católicos em Cesar Maia


O Rio está se transformando numa cidade partida pela religião. Não é palpite ou conversa de intelectual de botequim, mas o resultado do cruzamento de dois importantes estudos realizados por especialistas da PUC-Rio e pesquisadores franceses: o Atlas da Filiação Religiosa e a análise, zona por zona, das últimas eleições municipais.

Não foi por acaso que Cesar Maia começou e acabou a campanha subindo as escadas da Igreja da Penha. Nem tampouco o fato de pastores da Universal – com maiores ou menores subterfúgios – pedirem aos fiéis para que não votassem no “demônio” do PFL.

Nos escombros do brizolismo e germinado pelo início da erosão do garotismo nas áreas mais pobres da cidade, principalmente na Zona Oeste, brotou o voto útil evangélico, detectado pelos pesquisadores como uma tentativa de combater o voto útil católico, urdido para evitar a chegada de Marcelo Crivella ao segundo turno. Os dois movimentos são claramente evidenciados pelos mapas do estudo cruzado.

A votação de Marcelo Crivella sobrepuja o percentual do eleitorado potencial da Igreja Universal, abarca o restante do universo pentecostal e o da Igreja Batista, também forte na Zona Oeste, assim como em alguns subúrbios da Central e Leopoldina.

A região em que o percentual de votos do senador do PL foi mais alto corresponde exatamente às áreas onde são mais numerosos os fiéis desses três grupos. Da mesma forma, as áreas onde a população católica é mais compacta também são aquelas em que Cesar Maia teve a sua melhor votação.

O cientista político Cesar Romero Jacob, da PUC, esclarece que isso não significa que todos os evangélicos votaram em Crivella ou que todos os católicos escolheram Cesar Maia. Nem que, na mão inversa, apenas evangélicos votaram no senador e só católicos sufragaram o nome do prefeito.

– O que vemos apenas é a forte convergência entre os mapas das confissões religiosas e o dos votos nos dois candidatos. Cesar Romero enfatiza que os números indicam o insucesso da manobra política que transformou o pastor Manoel Ferreira, da Assembléia de Deus, no vice de Luis Paulo Conde (PMDB), candidato de Garotinho. Os fiéis da igreja não ligaram para o acordo político e aderiram a Crivella.

O fenômeno detectado pelos pesquisadores tem origem no descompasso entre o crescimento da população da cidade nas últimas décadas em direção à Zona Oeste, abrigando sobretudo massas marginalizadas, e a incapacidade do Estado de prover os serviços e a proteção necessária aos novos habitantes.

– O populismo já predominava na área, mas o ex-governador Anthony Garotinho introduziu uma novidade. Aliou o populismo à religião, criando uma espécie de populismo religioso, que demonstrou excelentes resultados eleitorais em 2002.

A política passou a instrumentalizar a religião. O palanque foi ao púlpito. O reverso da medalha não tardou. Pentecostais da Igreja Universal resolveram dispensar intermediários e passaram a instrumentalizar a política em seu proveito.

– Assim, o púlpito é que foi para o palanque e quase conseguiu a façanha inédita de levar um bispo pentecostal para o segundo turno – analisa o cientista político da PUC.

Entre outros fatores que desencadearam a presença maciça dos pentecostais na política, Cesar Romero aponta a ausência do Estado, a ação insuficiente da Igreja Católica nas regiões mais afastadas e o insucesso dos partidos de esquerda, que não conseguiram ocupar o espaço político aberto pela avassaladora ocupação das áreas periféricas da cidade.

A esquerda não se deu conta de que a cidade se expandiu, incluindo a Zona Oeste rica (Barra da Tijuca e Recreio). Esse espectro político, cada vez mais insignificante em termos eleitorais ficou no seu gueto, que tem Santa Teresa como epicentro, obtendo suas melhores votações também em Laranjeiras, Flamengo, e de outro na Tijuca, Maracanã e Vila Isabel, bairros de classe média. É o que revelam os mapas criados por Cesar Romero, pela geógrafa Dora Hees e pelos pesquisadores franceses Phippe Waniez e Violette Brustlein, especializados em cartografia eleitoral.

– É uma espécie de etnocentrismo. Parece que a esquerda só sabe olhar a cidade a partir da Zona Sul ou dos bairros de classe média da Zona Norte. “Pragmáticos” e “ideológicos” se desentendem sobre alianças quando o foco da discussão é a quase total ausência política do segmento nas áreas para onde o Rio se expandiu – observa Romero.

No vácuo formado, a religião substitui a ideologia enfraquecida. Hoje, esse avanço só tem um freio político: a competência demonstrada pelo prefeito para armar eficiente máquina em todos os quadrantes da cidade, incluindo aqueles onde os evangélicos se concentram. Nesses últimos, o prefeito também ganhou, embora por margens menores.

Em São Paulo, o quadro não se repete, pois o cruzamento dos dados indica que os votos evangélicos foram absorvidos pelo sistema político tradicional. O PT, por exemplo, tem abocanhado boa parte do eleitorado da Zona Leste e de outras áreas nas quais a população evangélica é mais concentrada.

O inédito quadro de cisma religioso traz um paradoxo: o Rio, que tem 60% que se declaram católicos e 17% evangélicos, é também a capital com maior percentual dos que se dizem sem religião: 13%.

A perspectiva desenhada é preocupante: a tradição republicana brasileira separa o Estado da religião.

– Um eventual embate religioso significa um retrocesso histórico – lembra Romero.

O estudioso diz que, após a queda do Muro de Berlim, em várias regiões do mundo a religião e não mais as ideologias vem sendo usada como instrumento de ação política, como se vê, por exemplo, no Oriente Médio e na Irlanda.

– Isso tem sido fonte constante de conflitos. Ao invés de o mundo caminhar, como seria de se esperar, para o diálogo inter-religioso e a criação de uma cultura que promova a paz, ocorre uma nefasta instrumentalização da religião. O Rio e o Brasil já têm problemas demais para ainda se verem envolvidos com a despolitização da política e a partidarização da religião – conclui o especialista.

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