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FMs ALL NEWS: O PAÍS NÃO FICOU MAIS INTELIGENTE

Escrito em 19 de agosto de 2008 por Alexandre Figueiredo.

1998. As FMs com roupagem de AM já estavam há mais de uma década no poder nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Ao longo dos anos, a grande imprensa viu nessas FMs uma vitrine para promover seus astros e a exercer um controle sobre a opinião pública, diante da subversão de idéias que se propaga na Internet.

Sabe-se que FM com roupagem de AM é quando uma emissora FM tenta imitar a programação falada das AMs, em claro interesse de concorrência desleal e concentração de poder, por mais que essa FM recorra a discursos em prol da "cidadania" e da "prestação de serviço". Os principais produtos são o noticiário prolongado e as jornadas esportivas (incluindo as transmissões de partidas de futebol ou demais eventos esportivos, como as corridas automobilísticas).

Quando empresários e profissionais de rádio faziam propagandas sobre as FMs com roupagem de AM, usaram um discurso que seduziu professores universitários, intelectuais e estudantes de Jornalismo. Falava-se que, com mais espaço para a "informação", as FMs expulsariam a música ruim, a burrice e a estupidez do rádio brasileiro, extinguindo a prática do jabaculê e instalando a democracia nas FMs. Alguns, mais ingênuos, achavam até que o socialismo entraria no Brasil pelas ondas de FM.

Ninguém desconfiou que justamente eram os veículos mais conservadores da grande imprensa que mais defendiam a Aemização das FMs, a pretexto de tornar as FMs mais "versáteis" e "cidadãs". Uma reportagem da revista Veja de 1984 - quando a revista já adotava uma linha bem conservadora - intitulada "A revolução das FMs", anunciava essa fórmula, e um dos empresários que falava em "aposentadoria do rádio AM" era associado ao conservador grupo do jornal O Estado de São Paulo.

Com isso, todo o discurso "messiânico" se contagiou feito sarampo e todo mundo acreditou que, com mais "jornalismo" nas FMs, o país seria tomado por um gigantesco debate público, todos nós nos transformaríamos em cientistas políticos, e até mendigos virariam filósofos. Haveria maior investigação, a corrupção seria varrida de vez pela ação das FMs e a sabedoria popular reinaria absoluta no país. Deixaríamos de ser analfabetos, porque passaríamos a "ler rádio FM".

Corrupção em dupla frequência

Essa utopia toda valeu todo o processo de Aemização das FMs, reforçado principalmente pela concessão politiqueira de rádios FM pelo presidente José Sarney e pelo então ministro das Comunicações, Antônio Carlos Magalhães, em meados dos anos 80. Como o know-how de rádio dos "empresários" beneficiados era baixo, eles fizeram de suas FMs imitações baratas de rádio AM, e logo na Era Collor muito do poder político dos novos coronéis eletrônicos se deu sobretudo porque suas FMs reservaram espaço para blá-blá-blá de "denúncia política" e "defesa da cidadania", com jornadas esportivas de sobremesa para a audiência obediente.

A partir de 1994, os astros da grande imprensa paulista viram nesse fenômeno das rádios "AM em FM" uma mina de ouro. Grupos da grande mídia como Globo e Bandeirantes começaram a trabalhar esse filão, como forma de introduzir uma versão eletrônica do "Projeto Folha", de cujo perfil ideológico os dois grupos da mídia eletrônica compartilham fielmente.

Assim, vieram tanto as jornadas esportivas 'full time' da Band FM e a "cidadania para inglês ver" da CBN FM São Paulo. A primeira investia, em 1997, em anúncios publicitários publicados, sem o menor critério, em qualquer revista da Editora Escala, irritando leitores que nada tinham a ver com o perfil da emissora. Até revistas de culinária e tricô publicavam anúncios da Band FM!. A Escala quase foi a falência diante de tal desastre publicitário.

Já a CBN, que irritou o público roqueiro de Curitiba ao tirar do ar a histórica Estação Primeira FM a partir de uma franquia de banqueiros e dirigentes esportivos paranaenses, entrou em São Paulo em 1998. É certo que a CBN FM entrou no lugar da fantasmagórica "Rádio X" FM, mas a freqüência já havia feito história com a rádio alternativa Excelsior FM (a Máquina do Som), nos anos 70.

Iniciava-se, assim, um dos maiores casos de CORRUPÇÃO radiofônica que ninguém levou a sério e ignorou tamanha gravidade. A dupla transmissão AM/FM - quando a CBN FM paulista surgiu, já havia a CBN AM local, e tal atitude já havia sido feita em Brasília anos antes - consiste, na prática, em adotar a fórmula "um mesmo trabalho com faturamento em dobro".

Essa armação é muito fácil. Para os olhos do público, a CBN AM e a CBN FM seriam uma só rádio. Mas para os olhos das autoridades, continuariam sendo duas rádios diferentes. As rádios investiriam em uma mesma transmissão, mas na hora de obter empréstimos dos cofres públicos, os registros jurídicos das duas emissoras, que continuam diferentes neste caso, são levados em conta. Imagine a fortuna que um empresário de rádio acumula com um truque desses!!

A dupla transmissão AM/FM também é uma armação que faz o rádio AM de refém. Qualquer problema com a dupla, é a emissora AM que leva a pior, sendo "assassinada" sem dó. A CBN AM Brasília, mesmo com audiência superior a da FM, foi cortada (e nem por isso a CBN FM Brasília foi beneficiada com isso).

A Bandeirantes também se valeu disso, criando na capital paulista a "Rádio Bandeirantes AM" nas ondas de FM, usando uma rádio de Santos (!) que "migrou" para o interior paulista, no célebre caso das "rádios que andam". E, com a fortuna obtida pelos empréstimos à dupla transmissão, a corporação de Johnny Saad (cujo avô materno foi o ex-governador paulista Adhemar de Barros) investiu na Band News FM.

Tirania da informação

E aí veio toda a campanha pela Aemização das FMs. "Cidadania", "liberdade de expressão", "prestação de serviço", foram as apologias mais comuns. As FMs, insatisfeitas em se auto-proclamarem "substitutas" do rádio AM, quiseram ser as "substitutas" do poder público, da imprensa escrita, do ensino universitário e, se der na talha, até do atendimento médico-hospitalar. A classe média alta caiu em delírio, porque não precisa mais refletir sobre a vida, seu pensamento chega em atacado nas ondas de FM.

Ninguém viu as armadilhas que estavam por trás desse "quarto poder" que finge estar fora do jogo do poder. A idéia de "informação" e "opinião" que vendem é a mais ridícula possível. Reduzem a "informação" a um processo de mera assimilação de notícias e debates no maior tempo possível, com as jornadas esportivas como sobremesa, é claro. A idéia de "opinião" é relacionada a algo que não está dentro de nós, porque só poderemos ter "opinião" se consumirmos os noticiários que se veicula a toda hora, incessantemente, compulsoriamente.

Como no ditado popular, que diz que quem nunca comeu doce, quando come, se lambuza, as FMs partem para o extremo-oposto do que faziam há 20 anos atrás. Por que os mesmos grupos radiofônicos que investiram em rádios sem notícias agora investem em notícias em excesso? As forças de poder mudam, mas não significa que o jogo de poder acabou no rádio FM. Se até um ex-prefeito de Salvador (Bahia), que roubou a cidade inteira, enriqueceu ilicitamente e agora quer investir em "informação de FM" posando de radiojornalista, é sinal de que algo está errado. E se até a Rede CBN anda mostrando horrores que chocam a opinião pública, é sinal de que algo está errado.

Essas FMs investem naquilo que os intelectuais mais respeitados do mundo definem como "tirania da informação", cujo instrumento de manipulação da sociedade é a "overdose de informação". Nomes como Noam Chomsky, Umberto Eco, Ignacio Ramonet, Paul Virilio, entre tantos outros, inclusive o geógrafo brasileiro Milton Santos, já falaram no perigo da overdose da informação. Na sociedade brasileira, no entanto, falar em "overdose de informação" é um tabu, porque a elite da grande imprensa brasileira tenta trabalhar essa idéia, falaciosamente, como uma "campanha golpista". Mas não é difícil entender que questionar a overdose informativa nada tem de golpista ou pró-censura.

Primeiro, porque a recepção incessante de notícias pode estressar o ouvinte. As FMs 'all news' ou de 'news & talk' são, na prática, gigantescos telejornais sem imagem, e a overdose informativa, o excesso de "conversa", inevitavelmente cansa o ouvinte após duas horas seguidas de audição. É tanta notícia, tanta opinião dos outros, tanta conversa que o cansaço é evidente, e a recepção incessante de "informação" (no sentido difundido pela grande imprensa) torna a pessoa cínica, alienada, conformista mas descrente da vida.

Não vamos falar muito dos prejuízos dessa overdose de informação nem do caso da concorrência desleal das FMs sobre as AMs, coisa que já está no site Preserve o Rádio AM. Vamos falar, no entanto, das conseqüências que a Aemização das FMs causaram na sociedade brasileira, que não melhorou com elas.

O País não melhorou com essas FMs: até piorou

Nos anos 80, tínhamos um rádio FM mais diversificado culturalmente, e um quadro radiofônico onde as FMs não se intrometiam no que as AMs faziam. Mas, nos anos 80, isso deu lugar a um capitalismo selvagem de FM que deixou até várias emissoras AM fora do ar. Mas outros "benefícios" anunciados por essa fase "racional" das FMs - que, a pretexto da "informação", usam da mesma "racionalidade" ideológica dos políticos do PSDB e DEM - não ocorreram. O Brasil não ficou mais inteligente. Quem era inteligente continuou inteligente e quem era alienado continou alienado.

A segmentação do rádio descarrilou de vez. E, pior, não foi a música ruim que saiu das FMs. Foi a música de qualidade, que, no máximo, se confina em obscuros programas noturnos ou em raras emissoras existentes. Pior que isso, é a grande mídia vender os ídolos bregas-popularescos, como Wando, Chitãozinho & Xororó, Alexandre Pires e outros, como se fossem "a nova MPB", eles que justamente eram os símbolos maiores da baixaria cultural que alimentava o mercado jabazeiro da Freqüência Modulada.

Além disso, o jabaculê não acabou com a programação "informativa". Pelo contrário, banqueiros e empreiteiros passaram a investir em rádios "informativas" como mediadores de sua linha editorial. Mas o grosso mesmo está nas jornadas esportivas, que recebem dinheiro de dirigentes esportivos, num esquema jabazeiro tão descarado que faz o tradicional jabá das rádios musicais parecer molecagem de criança inocente. O jabaculê esportivo em FM chega ao ponto de apelar para a poluição sonora em bares, portarias de prédios, postos de gasolina e até lojas de eletrodomésticos para forjar "grande audiência".

O Brasil não ficou mais sábio. Ninguém virou cientista político, nem ativista social e nem filósofo, devido a essas FMs. E a juventude aliás se encontra mais alienada do que antes, apesar dos esforços de alguns intelectuais paternalistas dizerem que "não é bem assim". Como "não é bem assim" diante de uma juventude viciada em noitadas e defensora de valores retrógrados ou irresponsáveis? Gente que cultua o MC Créu como se fosse o "novo Tom Jobim" e que vê militância social num remexer de glúteos não pode ser considerada "conscientizada".

Em dez anos de CBN FM São Paulo, esperava-se algum despertar dos brasileiros. Dez anos dão dois mandatos presidenciais e meio no nosso padrão constitucional, e NENHUMA melhoria efetiva ocorreu com a Aemização das FMs. O rádio ficou mais chato, mais narcisista, todo o discurso apologético só serviu para promover o poder sócio-político de uma elite de jornalistas, que se acham proprietários da opinião pública. Houve maior concentração de poder da grande mídia, e a sociedade acabou ficando mais acomodada. As vozes críticas existem, mas elas não participam do "circo da visibilidade" da grande mídia.

Comparação estarrecedora do efeito das FMs é entre os ouvintes da Fluminense FM de 1982-1985 e os ouvintes da Band News Fluminense de hoje. A veia crítica dos ouvintes da "Maldita" era algo evidente, era só encontrar um ouvinte, puxar conversa e geralmente era um bate-papo substancial sobre vários assuntos. Já o público da Band News Fluminense, na comunidade dedicada à rádio no Orkut, disse a que veio. A maioria dos membros só praticava tietagem e pedia sempre o aumento de duração dos programas e quadros. Se um programa tinha uma hora, pediam para ter duas. Se tinha duas, pediam para ter três ou quatro. Pediam mais tempo até para as piadas do José Simão! Insatisfeitos com uma rádio noticiosa 24 horas, queriam uma rádio de 48 ou 96 horas em apenas um dia. Pelo jeito adoram overdose da informação.

Por isso é que, no anedotário popular de Portugal, brasileiro gosta de ser mandado.

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